Reformas administrativas – em maior ou menor extensão, com este ou com outro nome – são tentadas ou realizadas há tempos imemoriais, em diversos Estados. Em importante e conceituado estudo intitulado “Por que reformas administrativas falham”, Flávio da Cunha Resende assume como premissa principal o fato de que “as reformas administrativas são políticas formuladas com o propósito geral de elevar a performance do aparato burocrático do Estado, e que estas, de modo geral, visam a dois objetivos gerais: o ajuste fiscal, e a mudança institucional”[1].
Após longa investigação sobre explicações doutrinárias correntes para os dilemas de implementação de reformas administrativas, o autor adere à teoria da falha permanente para explicar a extinção do Ministério da Administração e Reforma do Estado e a falta de cooperação para o alcance dos objetivos da chamada reforma gerencial, iniciada em meados de 1995. A teoria da falha permanente busca explicar como organizações podem apresentar reduzida performance e alta sobrevivência, sugerindo que “diante de reformas que visam a mudanças mais profundas nas instituições, nas relações de poder e nos mecanismos internos da burocracia, os atores estratégicos nem sempre estão de acordo sobre os possíveis ganhos com a elevação da performance. Assim, eles raramente cooperam “espontaneamente” com as reformas, sobretudo com aquelas que pretendem modificar os padrões de funcionamento do aparato burocrático, como as reformas administrativas, pois elas alterariam, com a elevação da performance, os benefícios historicamente acumulados com a manutenção da ordem institucional e o padrão de funcionamento das organizações, sobretudo em condições de baixa performance. De maneira geral, a elevação do desempenho não produziria, portanto, incentivos suficientes para mobilizar os atores em torno da cooperação com as políticas de reforma”[2]. No que se refere especificamente à reforma gerencial, orientada pelo Plano Diretor da Reforma do Estado, Flávio Resende aduz que a forte pressão pela realização do ajuste fiscal não foi suficiente – ao contrário – para angariar cooperação de atores estratégicos com relação às mudanças institucionais propostas para além das questões fiscais.
O Plano Diretor da Reforma do Estado continha, indubitavelmente, propostas de mudanças institucionais voltadas à melhoria da performance estatal no desempenho de suas competências constitucionais (agências reguladoras, agências executivas, organizações sociais, contratos de gestão e avaliação de desempenho, por exemplo, foram institutos concebidos com esse propósito). Institutos como a avaliação de desempenho, por exemplo, ainda aguardam regulamentação, enquanto o contrato de gestão previsto no art. 37, §8º tem tido escassa utilização, além de ser ainda questionado com relação à sua aptidão jurídica para produzir os efeitos desejados.
Sem aprofundar na questão da falha sequencial em razão dos limites deste espaço, é possível perceber que a nova proposta de reforma administrativa (PEC 32/20) não contém regras verdadeiramente voltadas ao incremento de performance do setor público, assim entendidas aquelas que objetivam criar condições para desempenho eficiente, eficaz e efetivo na criação e execução de políticas públicas e serviços públicos (ambos considerados em sentido amplo).
Inicialmente, convém destacar que as regras da PEC 32/20 relativas aos diferentes vínculos jurídicos para o exercício das funções públicas não trazem inovações voltadas à melhoria de desempenho do setor estatal, ao contrário. Inicialmente, o texto proposto cria nova nomenclatura (“cargos, vínculos e empregos públicos”[3]) com acréscimo de regras voltadas à restrição da estabilidade e da acumulação remunerada de cargos. Apesar de concordar, em abstrato, com a tese segundo a qual “somente servidores ocupantes de cargos típicos de Estado poderão adquirir estabilidade”, a proposta pouco diz a respeito de quais seriam tais cargos, limitando-se a remeter a disciplina da questão a lei complementar nacional[4]. A restrição da estabilidade não veio acompanhada de reforço no processo administrativo de desligamento, abrindo a possibilidade de utilização indevida para favorecimentos e perseguições. A perda de cargo por avaliação periódica de desempenho, que aguarda regulamentação desde a EC 19/98, continuará aguardando outro diploma legislativo para ter eficácia (desta vez, lei ordinária)[5]. Quanto à acumulação, a proposta veda a possibilidade para servidores de cargos típicos de Estado (incluindo proibição relativa ao exercício de qualquer outra atividade remunerada), mas torna regra a possibilidade de acumular para os demais vínculos, independente da atividade realizada[6]. No que se refere aos cargos em comissão, o risco de retrocesso é claro: a PEC 32 propõe alterar a disciplina atual, restrita, por outra que permite a criação de cargos para o exercício de atribuições técnicas, sem exigência adicional de qualificação. Além disso, a proposta remete a ato do chefe de cada Poder a disposição de critérios mínimos de acesso aos chamados “cargos de liderança e assessoramento”[7], facilitando o caminho do clientelismo e patrimonialismo que teimam em se manter como características de nossa Administração Pública.
As diversas regras relativas à restrição de vantagens remuneratórias possuem claro objetivo de contribuir para diminuição de gastos, sem relação direta com melhoria de desempenho. Ainda assim, possuirão efeito prático relativo, sendo “normas placebo”, na correta percepção de Paulo Modesto: “chovem no molhado e proíbem o que já está proibido e, ainda mais, proíbem em plano geral e permitem no varejo das únicas situações em que elas ocorrem”[8]. Serve como exemplo a vedação de férias em período superior a trinta dias pelo período aquisitivo de um ano, mas se aplicação para membros da magistratura e Ministério Público, praticamente as únicas categorias que gozam de férias superiores a 30 dias.
Além dos aspectos comentados, o excesso de remissões à legislação inferior, sobretudo leis complementares federais, traz insegurança jurídica não somente no que se refere à postura do legislador infraconstitucional como também em razão da possível judicialização voltada à garantia da autonomia dos Estados e Municípios.
A proposta de reforma não possui amparo em qualquer concepção de Estado e de Administração Pública, ao contrário da reforma gerencial dos anos 90. Evidências empíricas, estudos detalhados, objetivos e estratégias para alcança-los, cenários e efeitos esperados – se existem – não foram apresentados para conhecimento e debate. A despeito da concordância geral de que é preciso avançar na busca de incremento da performance da Administração Pública para que as promessas trazidas pela Constituição Federal possam se tornar realidade, a PEC 32 parece nos deixar mais perto de retroceder do que de caminhar para frente.
[1] REZENDE, Flávio da Cunha. Por que reformas administrativas falham?. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 2002, vol.17, n.50, pp.123-142. ISSN 1806-9053.
[2] Idem.
[3] Redação proposta para os incisos I a IV do art.37 da CF
[4] Art.39-A, §1º
[5] Art. 41, III
[6] Art.37, incisos XVI, XVI-A e XVI-B
[7] Art.37, V e §18.
[8] http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/paulo-modesto/pec-32-notas-sobre-a-proposta-de-emenda-constitucional-da-reforma-administrativa-da-gestao-bolsonaro