A nova lei de licitações e a terapia do diálogo

A nova lei de licitações e a terapia do diálogo

Bruno Belem

No início, em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma só maneira de falar. Eis o
que narra o Capítulo 11 do Livro de Gênesis. Na psicologia, o diálogo é meio de estímulo
direcionado à identificação de problemas, de modo que, na sequência, se possa buscar as
soluções adequadas.
No direito administrativo clássico a Administração não dialogava com o “administrado”, dado
que este era mero destinatário do poder que unilateralmente era exercido pelo Estado. No
Brasil, o diálogo público-privado tem sido considerado um modelo de interação capaz de
gerar eficiência no âmbito da atividade administrativa.
Nesse contexto, à falta de diálogo se atribui parte da culpa pela falta ou baixa efetividade de
algumas ações do Estado. É comum, por exemplo, falar-se que no Brasil sobram — ou
sobravam — recursos públicos, mas faltam bons projetos de infraestrutura. Ou seja, havia
farinha, mas faltavam boas receitas.
Há mais de 25 anos, o legislador brasileiro admitiu, no âmbito das concessões, que o poder
público autorizasse a realização de estudos e que estes, uma vez colocados à disposição
dos demais interessados, devessem ser ressarcidos pelo vencedor da licitação (artigo 21
da Lei nº 8.987/1995). No exterior o mecanismo já era conhecido como unsolicited proposal
(proposta não solicitada).
No ano de 2009, como resultado da conversão da Medida Provisória nº 445/2008, o artigo
2º da Lei nº 11.922 expressamente autorizou a Administração Pública a estabelecer normas
para regular procedimento administrativo “visando a estimular a iniciativa privada a
apresentar, por sua conta e risco, estudos e projetos relativos à concessão de serviços
públicos, concessão de obra pública ou parceria público privada.”
A partir daí, incontáveis decretos foram editados em todos os níveis da federação dispondo
sobre o que, na maioria deles, se chamou procedimento de manifestação de interesse
(PMI). Em essência, os decretos dispuseram sobre a forma pela qual o setor privado
poderia apresentar projetos, estudos, levantamentos ou investigações a serem utilizados
em modelagens de parcerias público-privadas.
Ao longo dos anos notou-se uma gradual ampliação da utilização — ou da pretensão de
fazê-lo — do procedimento de manifestação de interesse, inclusive no âmbito das
denominadas parcerias firmadas entre a Administração Pública e as organizações da
sociedade civil sem fins lucrativos. Por exemplo, o que antes representava um
procedimento iniciado pela Administração Pública, passou a poder ser desencadeado por
provocação direta do setor privado interessado.
Além disso, o procedimento, que, no plano federal, estava circunscrito aos projetos de
parcerias público-privadas já definidas como prioritárias (Decreto nº 5.977/2006), passou a
visar às concessões ou permissões de serviços públicos ou a concessão de direito real de
uso (Decreto nº 8.428/2015) e, mais recentemente, à estruturação de desestatização de
empresa e de contratos de parcerias (Decreto nº 10.104/2019).
Seguindo o que parece ser uma tendência no ordenamento jurídico brasileiro, o artigo 80 do
Projeto de Lei nº 1.292 (PL das Licitações) dispõe sobre o procedimento de manifestação
de interesse, tido como uma espécie de procedimento auxiliar das licitações e das
contratações, ao lado do credenciamento, da pré-qualificação, do sistema de registro e de
preços e do registro cadastral (artigo 70 do PL). O PMI não se confunde com o diálogo
competitivo, que é uma nova modalidade de licitação.
De acordo com o PL, a Administração poderá solicitar à iniciativa privada, mediante
procedimento aberto de manifestação de interesse, a ser iniciado com a publicação de
edital de chamamento público, estudos, investigações, levantamentos e projetos de
“soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública, na forma de
regulamento” .
Portanto, à luz do PL, esta forma que nem é mais tão alternativa assim, pelo menos em
matéria de concessões, destina-se basicamente à obtenção de projetos de soluções
inovadoras relacionados a assuntos considerados de relevância pública. Vê-se aí uma
ampliação importante do âmbito de aplicação do instituto.
Numa primeira tentativa de densificar o espaço de aplicação do procedimento, tem-se como
inovação a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que
resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de
novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que
possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho” (artigo 2º,
IV, da Lei nº 10.973/2004).
Por outro lado, é mais difícil definir “relevância pública” . À luz da Constituição, por exemplo,
tal qualificação está associada aos serviços de saúde (artigo 197). Entretanto, dado o
alcance da legislação de licitações e contratação, é provável que o procedimento de
manifestação de interesse também seja utilizado para fins de contratação em outras áreas.
Não se estranharia que o procedimento fosse utilizado ainda em matéria de concepção e
implantação de políticas públicas, bem como na definição de mecanismos de regulação.
Neste último domínio já se fala em sandbox regulatório para designar uma espécie de
“caixa de areia” em que, sob a supervisão de entidades reguladoras, empresas são
autorizadas a testarem serviços ou produtos inovadores em menor escala e em ambientes
controlados.
Seguindo a lógica dos demais atos normativos, e da tradição associada ao procedimento de
manifestação de interesse, os estudos, investigações, levantamentos e projetos vinculados
à contratação e de utilidade para a licitação, realizados pela Administração ou com a sua
autorização, estarão à disposição dos interessados, e o vencedor da licitação deverá
ressarcir os dispêndios correspondentes, conforme especificado no edital.
A propósito, de acordo com o § 4º do artigo 80 do PL, o PMI poderá ser restrito a startups,
assim considerados os microempreendedores individuais, as microempresas e as empresas
de pequeno porte, “de natureza emergente e com grande potencial, que se dediquem à
pesquisa, ao desenvolvimento e à implementação de novos produtos ou serviços baseados
em soluções tecnológicas inovadoras que possam causar alto impacto” .
Este modelo de interação entre o poder público e o setor privado pode oferecer algumas
vantagens, como: suprir a deficiência de pessoal e financeira imediata da administração;
aumentar a carteira de projetos, já que utiliza a mão de obra do setor privado na fase de
concepção e desenho; permitir que soluções inovadoras criadas no setor privado sejam
incorporadas ao setor público, o que se mostra possível a partir da interação entre os dois
universos; e permitir que a Administração Pública perceba a maturidade do mercado em
dado setor da economia.
Todavia, como tudo na vida, o PMI não está imune a riscos. Apenas para mencionar alguns:
ausência de capacidade de alguns setores do poder público e do próprio setor privado para
a elaboração dos projetos, o que pode gerar comportamentos oportunistas de ambos os
lados; parametrizações insuficientes dos estudos e projetos solicitados; ausência de
coordenação pública das fases de produção dos estudos e projetos; e falta de transparência
na divulgação das informações necessárias à elaboração dos projetos por parte do setor
privado interessado; e, finalmente, captura do setor público pelo setor privado.
Em meio aos riscos e às vantagens do PMI, este deve servir como mecanismo de diálogo
entre o Poder Público e o setor privado. Nos tempos de hoje, é paradoxal que a troca
sincera e amistosa de ideias ainda encontre resistência na arena proporcionada pelas redes
sociais. Caso a utilização do PMI ocorra sem que o poder público disponha de meios para
mitigar os seus riscos, o poderoso instrumento pode se transformar na Babel das
contratações e licitações públicas.


Bruno Belem
Mestre em Ciências Jurídico-Políticas (Universidade de Lisboa)
Especialista em Direito Constitucional (FD/UFG)
Vice-presidente do Instituto de Direito Administrativo de Goiás
Advogado

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