O Congresso Nacional promulgou, no dia 15 de março deste ano, a Emenda Constitucional nº 109, conhecida durante o trâmite legislativo como PEC Emergencial (PEC 186/19) e famosa pela instituição do novo auxílio financeiro para a população considerada vulnerável e afetada economicamente pela pandemia.
Assim como em outras ocasiões relacionadas a medidas de ajuste fiscal, preocupações importantes emergiram a partir da edição das normas de restrição, tal qual o temor de corte dos gastos com políticas públicas sociais, de contenção dos investimentos em pesquisa e tecnologia e de retrocessos no âmbito da burocracia estatal, isto é, redução de benefícios ou prerrogativas dos servidores públicos, diminuição de vagas na Administração e mitigação dos concursos públicos.
A EC nº 109/2021 foi proposta em novembro de 2019, antes da pandemia da COVID, e visava a dar suporte para as reformas anunciadas pelo Governo Federal à época, em continuidade aos ajustes fiscais já promovidos pela Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016, e pela Lei Complementar nº 159, de 19 de maio de 2017 (recentemente modificada pela Lei Complementar nº 178, de 13 de janeiro de 2021) que, relembre-se, também veiculavam a vedação à realização de concursos públicos com as mesmas exceções.
Contudo, após um ano e meio paralisada, a PEC nº 186/19 acabou funcionando como contrapartida para a instituição do novo auxílio financeiro emergencial, o que permitiu a aceleração do trâmite legislativo e, consequentemente, sua aprovação nas duas Casas (Senado e Câmara dos Deputados) em menos de um mês.
Não obstante a estranheza e a desnecessidade de se instituir regras permanentes de contenção de despesas na Constituição Federal para justificar a adoção de providência emergencial e provisória (auxílio financeiro), o tema a ser tratado neste artigo é o impacto da EC nº 109/2021 nos concursos públicos. Desse modo, a ideia é verificar se os chamados “gatilhos fiscais” (fatos que disparam a utilização das restrições pelos entes federativos) impactam negativamente na realização de concursos públicos, razão pela qual não se analisará a pertinência e a constitucionalidade da referida Emenda.
O art. 167-A, recém-introduzido na Constituição Federal pela EC nº 109/2021, prevê que, uma vez apurado que a relação entre despesas e receitas correntes supera 95% (noventa e cinco por cento), em um período de 12 meses, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e demais órgãos autônomos (Ministério Público, Tribunal de Contas e Defensoria Pública), enquanto perdurar a situação, dentre outras medidas, aplicar a vedação relativa à admissão ou contratação de pessoal a qualquer título (inciso IV) e a realização de concurso público (inciso V), exceto para as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios (incisos IV, alínea b, e V).
Outros gatilhos que ensejam a possibilidade da adoção das medidas restritivas estão no §1º do art. 167-A (quando a despesa corrente superar 85% da receita corrente); no caput do art. 167-G (enquanto perdurar a situação de calamidade pública nacional para a União); e no §3º do art. 167-G (enquanto perdurar a situação de calamidade pública nacional, facultativamente, para os Estados, Distrito Federal e Municípios).
Vale lembrar, ainda, que a opção pela adoção ou não das restrições constantes no art. 167-A deve ser decidida levando-se em consideração as significativas vedações contidas nos incisos do §6º do mesmo artigo (impossibilidade de concessão de garantias e tomada de operação de crédito com outros entes da Federação), que repercutem a favor da aplicação das regras recessivas de contratação de pessoal.
Também merece destaque a alteração procedida no art. 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, cuja redação atual prevê a aplicação da proibição de realização de concurso público caso seja verificado individualmente, em cada Poder e órgão autônomo, no momento da aprovação da lei orçamentária, que a proporção das despesas primárias obrigatórias supera 95% (noventa e cinco por cento) da despesa primária total (caput e incisos IV e V) respectiva, ressalvando-se, porém, a reposição de vacâncias de servidores efetivos ou vitalícios.
Extrai-se da mera leitura dos dispositivos retro indicados que, no tocante aos concursos públicos, as regras proibitivas da EC nº 109/2021 não constituem qualquer novidade.
Com efeito, desde a edição da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000) que a vedação à realização de concursos públicos figura no rol de providências relacionadas à contenção das despesas de pessoal, em todos os diplomas legais atinentes a medidas de ajuste fiscal:
Demais disso, a exceção consubstanciada na possibilidade de reposição das vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios é, igualmente, prevista.
A conclusão inevitável, por mim já expressada desde a edição da EC nº 95/2016[1], é que não há empecilho à realização de concursos públicos, haja vista que estes se destinam, precipuamente, a recrutar candidatos aptos a preencher e exercer cargos e empregos na Administração Pública que estejam vagos ou em vias de vagar, considerando-se, no planejamento do concurso, as aposentadorias que ocorrerão durante o período de validade constante do Edital.
Convém ressaltar, entretanto, que as hipóteses de abertura de concurso público com vistas à correção de irregularidades ou deficiências no quadro de pessoal, seja quanto à substituição de mão-de-obra comissionada e de terceirizados que exercem atribuições exclusivas de cargos efetivos, seja em virtude de defasagem no número de profissionais especializados em face da necessidade da Administração, por dependerem da criação de novos postos, por lei específica, submetem-se à vedação provocada pelos gatilhos fiscais indicados no quadro acima, enquanto perdurarem as situações excepcionais, ainda que o processo legislativo respectivo tenha sido deflagrado.
Assim, os concursos públicos não estão proibidos. O acesso democrático e meritório ao serviço público mantem-se como regra única, legítima e vigente de recrutamento para os cargos efetivos ou vitalícios, ainda que nos momentos de crise fiscal e de calamidade pública.
Que bom! (respira o aliviado leitor).
“Bom, mas não muito!” – respondo parafraseando o célebre Malba Tahan (pseudônimo do genial escritor brasileiro Julio Cesar de Mello e Sousa) e lembrando o título de um de seus contos[2].
O impacto negativo no âmbito dos concursos públicos virá dos efeitos da edição da Lei Complementar nº 178, de 13 de janeiro de 2021, que estabelece o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal, o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal e promove expressivas modificações na Lei de Responsabilidade Fiscal, em especial, no cômputo da despesa de pessoal, bem como da reforma administrativa, caso a PEC nº 32/2020 seja aprovada sem alterações ao projeto.
Mas isso é tema para outro artigo.
[1] Palestras proferidas no 3º Congresso Brasileiro de Gestores e Membros de Comissão de Concurso Público, realizado em 2017 e no XV Congresso Goiano de Direito Administrativo, realizado em 2018.
[2] Publicado no primeiro livro “Contos de Malba Tahan”, de 1925, cuja primeira edição foi a única obra que Julio Cesar assinou com seu próprio nome.