Federação e vacinas: quem pode o quê, segundo o STF?

Francisco Taveira Neto

Vivemos tempos de ativismo judicial, em que a omissão ou o insuficiente exercício de competências dos Poderes Executivo e Legislativo tem gerado o impulso do Poder Judiciário pelos representantes da sociedade organizada. Neste cenário, vimos, no último dia 24/02/21, a Suprema Corte de nosso país referendar, por todos os seus membros, em uníssono, a decisão, antes monocrática, lançada pelo Min. Ricardo Lewandowski em 17/12/2020, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº770[1], intentada pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Em síntese, a OAB alega que a gravidade da crise sanitária provocada pela COVID-19 em todo o mundo impõe providências mais enérgicas das autoridades responsáveis pela prestação dos serviços públicos de saúde, notadamente as que integram o poder público federal a quem incumbe, nos termos da Lei nº 6.259/75[2], a elaboração do Plano Nacional de Imunizações (art.3º), bem como a coordenação a sua execução (art.4º). Diante das dificuldades enfrentadas pela União, no que concerne à importação de vacinas prontas ou de seus insumos para a final produção em território brasileiro, a autora da arguição impulsiona o STF a posicionar-se sobre a possibilidade, nesta matéria específica – imunização –, da participação dos demais entes federados, Estados, Distrito Federal e Municípios, na aquisição de imunizantes e sua consequente aplicação na população que deles depende para a sobrevivência.

A Suprema Corte assim se pronunciou: O Tribunal, por unanimidade, referendou a medida liminar pleiteada para assentar que os Estados, Distrito Federal e Municípios (i) no caso de descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19, recentemente tornado público pela União, ou na hipótese de que este não proveja cobertura imunológica tempestiva e suficiente contra a doença, poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham, previamente aprovadas pela Anvisa, ou (ii) se esta agência governamental não expedir a autorização competente, no prazo de 72 horas, poderão importar e distribuir vacinas registradas por pelo menos uma das autoridades sanitárias estrangeiras e liberadas para distribuição comercial nos respectivos países, conforme o art. 3°, VIII, a, e § 7°-A, da Lei 13.979/2020, ou, ainda, quaisquer outras que vierem a ser aprovadas, em caráter emergencial, nos termos da Resolução DC/ANVISA 444, de 10/12/2020, nos termos do voto do Relator”[3].

Como se vê, o STF reconheceu que a tarefa de imunizar a população é espécie do gênero “cuidar da saúde”, constante do inciso II do art. 23 da Carta da República que estabelece o rol de competências comuns à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Além disso, a Suprema Corte descreve o caminho a ser percorrido, caso as pessoas políticas optem pelo exercício desta competência comum.

Uma vez reconhecida a legitimidade dos Estados, Distrito Federal e Municípios para comprar e aplicar imunizantes, algumas opiniões sobre como e quando fazer, vieram à baila. Em Goiás, por exemplo, cogitou-se que a autorização dada pelo STF imporia a destinação do produto adquirido à divisão proporcional feita pela União, restando ao verdadeiro adquirente, somente o percentual a que faria jus, se o imunizante houvesse sido adquirido pela União, tudo isso em homenagem ao “federalismo cooperativo ou de integração”. De fato, estas expressões foram usadas pelo eminente Relator da matéria, na condução do julgado unânime. Entretanto, ao proceder à leitura detida da medida cautelar, observa-se que as expressões cooperação e integração foram utilizadas de forma a legitimar a atuação comum das diferentes pessoas políticas. Em momento algum, no feito, seja no pedido da parte autora, seja na manifestação ministerial ou até mesmo no exercício da jurisdição constitucional cogitou-se de que as aquisições autorizadas deveriam ser destinadas à distribuição proporcional, como ocorre nos casos em que a União é a adquirente.

Além de não haver previsão neste sentido no julgado, há dois obstáculos que nos parecem insuperáveis para se sustentar a distribuição proporcional no caso da aquisição por pessoa política diversa da União. Um de ordem legal, relacionado à responsabilização e outro de ordem lógica.

Em matéria de responsabilização, é evidente que seria questionável imaginar-se uma unidade da federação custear serviços de saúde de outra. Notadamente em um cenário como o vivido em nosso país, em que os recursos públicos são sabidamente insuficientes para as crescentes demandas sociais. A “cortesia” de um Estado-membro mais “rico” a outro mais “pobre” certamente implicaria na instauração de procedimento no âmbito do competente Ministério Público para apurar se não houve ofensa ao reiterado brocardo segundo o qual “a ninguém é dado ser desprendido com o que não lhe pertence”[4], o que ensejaria, certamente, o ajuizamento da competente ação civil pública em razão de ato de improbidade administrativa.

O outro obstáculo é de razão lógica. Imaginar que todo o esforço de gestão; de prioridade orçamentária e financeira para adquirir imunizantes seria “premiado” com a distribuição proporcional é, certamente, desestimulante; frustrante; esmurecedor. Nesta hipótese, Estados, Distrito Federal e Municípios agiriam não em seus respectivos favores, mas em lugar da União, o que não faz sentido lógico nenhum. Assim, não se respeitaria a autonomia das demais unidades da federação que, ao assumir voluntariamente o ônus de uma atribuição que a ordem jurídica incumbiu inicialmente à União, o razoável; o lógico; o coerente é que o produto de seu esforço seja destinado aos cidadãos desta mesma pessoa política.

Por fim, necessária uma remissão à previsão expressa contida no julgado: “os Estados, Distrito Federal e Municípios … poderão dispensar às respectivas populações as vacinas das quais disponham”. A expressão “respectivas” impõe interpretação restritiva, o que, a contrário sensu, impede que uma pessoa política dispense vacina à população de outra.

As reflexões aqui intentadas indicam que não há amparo lógico ou jurídico à interpretação segundo a qual o produto das aquisições de imunizantes por pessoas políticas diversas da União deve se submeter à divisão proporcional estabelecida no Plano Nacional de Imunizações – PNI.

Entretanto, outras questões surgirão, como, por exemplo, a possibilidade ou não de compensação futura, no PNI, do número de doses adquirido pelo Estado, Distrito Federal ou Município, o que deixa claro que a vacinação contra a COVID-19 é matéria polêmica e, por isso mesmo, não está imune de dúvidas.

Francisco Taveira Neto

Advogado.


[1] No mesmo sentido, tendo o mesmo Relator e julgada na mesma data a ACO 3451, proposta pelo Estado do Maranhão.

[2] Dispõe sobre a organização das ações de Vigilância Epidemiológica, sobre o Programa Nacional de Imunizações, estabelece normas relativas à notificação compulsória de doenças, e dá outras providências. 

[3] Grifos não constantes do original.

[4] Expressão sempre presente nas lúcidas lições do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello.

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